Shakespeare e Machado falam a mesma língua

Você já teve a sensação de que uma história, escrita há séculos em um país distante, parece falar diretamente com você? Que a dor de um personagem de Shakespeare ou a angústia de um de Dostoiévski ecoa em sua própria alma? Se sim, você já foi tocado pelo poder dos temas universais na literatura. Eles são o código secreto da humanidade, as grandes questões que nos conectam através do tempo, da cultura e da geografia.

Mas surge uma pergunta intrigante: a literatura brasileira, com toda a sua cor e particularidade, traduz esses temas da mesma forma? Ou será que o nosso jeito de contar histórias reinventou o amor, a morte, o poder e a identidade?

Prepare-se. Neste artigo, vamos mergulhar nas profundezas da alma humana retratada na literatura. Vamos decodificar o que torna essas narrativas imortais e descobrir como a literatura brasileira, de Machado de Assis a Clarice Lispector, usou esse vocabulário universal para pintar um retrato único – e por vezes brutal – do que significa ser brasileiro.

O que são, afinal, os temas universais na Literatura

O que são, afinal, os temas universais na Literatura?

Antes de cruzarmos o Atlântico, vamos alinhar os conceitos. Temas universais são ideias, emoções e experiências humanas fundamentais que transcendem fronteiras culturais e temporais. Eles são os pilares sobre os quais as maiores histórias são construídas, porque falam diretamente à condição humana.

Pense neles como o sistema operacional da humanidade. Não importa se você está lendo em um tablet moderno ou em um pergaminho antigo; o hardware (nosso cérebro e coração) processa as mesmas angústias e alegrias fundamentais:

  • A busca por amor e conexão.
  • O medo da morte e o mistério do que vem depois.
  • A ambição pelo poder e as consequências de sua obtenção.
  • A crise de identidade e a pergunta incessante: “Quem sou eu?”.

Esses temas são a razão pela qual a jornada do herói, popularizada por Joseph Campbell, aparece em mitos e histórias de todas as civilizações. Eles são arquétipos gravados em nosso inconsciente coletivo, garantindo que uma boa história seja sempre uma boa história, em qualquer lugar do mundo.

O quarteto fantástico da alma humana na Literatura Mundial

Para entender como o Brasil se encaixa nesse mapa, precisamos primeiro visitar os grandes marcos da literatura mundial. Vamos analisar o quarteto de temas mais poderoso: amor, morte, poder e identidade.

O Amor: de Romeu e Julieta às complicações modernas

O amor é, talvez, o mais explorado de todos os temas. Na literatura mundial, ele assume formas épicas.

  • O Amor Trágico e Proibido: A referência máxima é, sem dúvida, Romeu e Julieta, de Shakespeare. A história dos amantes de Verona cujo amor é impedido pela rivalidade de suas famílias se tornou o arquétipo do amor jovem, intenso e condenado. Ele nos mostra um amor que é mais forte do que a lealdade familiar, mas não forte o suficiente para vencer o destino e o ódio.
  • O Amor como jogo social e econômico: Jane Austen, em Orgulho e Preconceito, nos dá uma visão mais pragmática, mas não menos apaixonante. O casamento na Inglaterra do século XIX era um contrato social. A dança entre Elizabeth Bennet e o Sr. Darcy explora o amor que precisa superar o orgulho de classe e o preconceito pessoal para florescer, provando que a conexão intelectual e a admiração mútua são tão cruciais quanto a atração.

A Morte: o fim inevitável que inspira a arte

A morte é o grande equalizador. Na literatura, ela é tanto um evento final quanto um catalisador para a transformação e a reflexão filosófica.

  • A morte como despertar existencial: Em A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, acompanhamos um burocrata que, diante de uma doença terminal, percebe o vácuo de sua vida artificial e materialista. A morte não é o tema principal; a vida que se vive diante dela é. A obra é uma meditação profunda sobre autenticidade e arrependimento.
  • A morte como atmosfera e mistério: Ninguém trabalhou a morte com a atmosfera sombria de Edgar Allan Poe. Em poemas como O Corvo ou contos como A Queda da Casa de Usher, a morte não é apenas um desfecho, mas uma presença constante, um véu de melancolia e horror que permeia a realidade, questionando a sanidade e a fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos.

O Poder: a ascensão e queda dos reis e dos homens comuns

A sede por poder e controle é um motor poderoso da história humana e, consequentemente, da literatura.

  • A ambição cega e corruptora: Macbeth, de Shakespeare, é o estudo de caso definitivo. Vemos como a sugestão de poder, plantada por uma profecia, pode levar um homem nobre a uma espiral de traição, assassinato e paranoia. A peça é uma aula sobre como o poder absoluto corrompe absolutamente, destruindo não apenas o tirano, mas tudo ao seu redor.
  • O poder totalitário e a anulação do indivíduo: George Orwell, em 1984, leva a discussão do poder para a esfera política e tecnológica. Ele nos mostra um futuro distópico onde o poder não busca apenas controlar ações, mas o próprio pensamento. O “Grande Irmão” é a personificação do poder que visa apagar a individualidade, a história e a verdade, um alerta atemporal sobre os perigos da vigilância e do controle estatal.

A Identidade: a eterna busca por “quem sou eu?”

A jornada de autodescoberta, seja ela interna ou externa, é a espinha dorsal de inúmeras obras-primas.

  • A alienação e a perda do Eu: Em A Metamorfose, de Franz Kafka, Gregor Samsa acorda transformado em um inseto monstruoso. A transformação física é uma metáfora devastadora para a alienação, o isolamento e a perda de identidade no mundo moderno. Ele não é mais reconhecido por sua família ou pela sociedade, levantando a questão: o que resta de nós quando nossa utilidade e aparência desaparecem?
  • A identidade como construção e loucura: Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, decide se tornar um cavaleiro andante, construindo para si uma nova identidade baseada nos livros que leu. A obra explora de maneira cômica e trágica a linha tênue entre idealismo e loucura, e como a identidade que projetamos para o mundo pode entrar em conflito brutal com a realidade.
Machado e Lispector (1)

E no Brasil? A Literatura Brasileira reinventou a roda?

Agora, a pergunta de um milhão de reais. A literatura brasileira importou esses temas e apenas os traduziu para o Português? A resposta é um sonoro não. Nós não reinventamos a roda, mas a colocamos para girar em um terreno completamente diferente: acidentado, diverso, marcado por profundas cicatrizes sociais e uma cultura vibrante e sincrética.

É aqui que a genialidade dos nossos autores brilha. Eles pegam esses temas universais e os mergulham no “caldo” brasileiro.

O jeitinho brasileiro de falar de amor

O amor no Brasil raramente é um conto de fadas. Ele vem com uma dose de ironia, ciúme e crítica social.

  • O Amor como labirinto Psicológico: Dom Casmurro, de Machado de Assis, pega o tema universal da traição amorosa e o transforma em uma obra-prima da ambiguidade. O amor de Bentinho por Capitu é dissecado sob a ótica do ciúme paranoico. Machado não está interessado em nos dar uma resposta sobre a traição; ele usa a dúvida para expor a insegurança da elite patriarcal, a subjetividade da memória e a natureza possessiva do amor romântico.
  • O amor sensual e sincrético: Jorge Amado, em Dona Flor e Seus Dois Maridos, nos dá um amor com o tempero da Bahia. Flor ama a segurança e o carinho de seu segundo marido, o farmacêutico Teodoro, mas também sente falta da paixão avassaladora e irresponsável de seu primeiro, o malandro Vadinho. A solução? Ficar com os dois, um vivo e outro em espírito. Amado celebra um amor que transcende a moralidade judaico-cristã, misturando o sagrado e o profano, o corpo e a alma, de uma forma unicamente brasileira.

A morte com sotaque tropical: entre o luto e a crítica social

Se na Europa a morte inspira reflexões filosóficas, no Brasil ela muitas vezes vem carimbada pela denúncia da desigualdade.

  • A morte como consequência da miséria: Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a morte não é um evento dramático; é uma personagem constante e banal. A cachorra Baleia, ao morrer, tem pensamentos quase humanos, enquanto a família de retirantes segue sua jornada sob o sol escaldante, onde a vida é tão precária que a morte é apenas mais um obstáculo. A morte aqui é um retrato brutal da negligência social e da luta pela sobrevivência no sertão.
  • A vida que se afirma na morte: João Cabral de Melo Neto, no poema dramático Morte e Vida Severina, eleva essa temática. Severino, um retirante, segue o rio Capibaribe em busca de vida no Recife, mas em todo lugar que passa, só encontra a morte. A morte é tão comum que tem nome e profissão. A virada genial acontece no final: o nascimento de uma criança, em meio à miséria total, reafirma a teimosia da vida. É a vida que insiste, apesar de tudo.

O Poder à brasileira: coronelismo, corrupção e subversão

O poder na literatura brasileira raramente é sobre reis e coroas. É sobre o “coronel”, o burocrata, o “homem cordial” e as estruturas de favor que definem nossa sociedade.

  • O poder do coronel: Em obras como Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, o poder é local, personificado na figura do coronel, o grande proprietário de terras que manda e desmanda na política, na economia e na vida pessoal de todos. É um poder baseado na violência, no carisma e em trocas de favores, um retrato fiel do coronelismo que marcou (e ainda marca) partes do Brasil.
  • A crítica ao poder institucional: Lima Barreto, em Triste Fim de Policarpo Quaresma, faz uma crítica ácida ao poder do Estado e ao nacionalismo ufanista. Quaresma é um patriota ingênuo que acredita nas instituições e no potencial do Brasil. Sua jornada mostra como o poder real – burocrático, corrupto e indiferente – esmaga o idealismo individual. É a desilusão com as promessas não cumpridas do país.

A Identidade fragmentada: quem é o brasileiro?

Talvez nenhum outro tema seja tão central para nós. A busca pela identidade em um país de dimensões continentais, formado por uma mistura complexa de povos e culturas, é nossa grande saga.

  • A Identidade como Anti-herói: Macunaíma, de Mário de Andrade, é a tradução definitiva dessa busca. O “herói sem nenhum caráter” nasce índio, vira branco, se passa por negro. Ele é preguiçoso, esperto, sensual e egoísta. Macunaíma não é um modelo a ser seguido; ele é um espelho multifacetado da identidade brasileira, uma colcha de retalhos de qualidades e defeitos, sem uma forma definida.
  • A Identidade na solidão da metrópole: Clarice Lispector, em A Hora da Estrela, nos apresenta Macabéa, uma migrante nordestina alienada e “invisível” na cidade grande do Rio de Janeiro. Sua busca por identidade não é uma aventura épica, mas uma luta silenciosa e interna para simplesmente ser, para ter um pingo de dignidade e autoimportância. Clarice explora a identidade (ou a falta dela) a partir do vazio, da insignificância do indivíduo esmagado pela massa urbana.
O molho secreto da Literatura Brasileira

A grande diferença: o molho secreto da Literatura Brasileira

Então, Shakespeare e Machado de Assis falam a mesma língua? Sim, a língua dos temas universais. Ambos falam de amor, traição, poder e morte. A diferença crucial, o nosso “molho secreto”, está no contexto, na perspectiva e no sotaque.

A literatura brasileira aborda os temas universais através de lentes muito específicas:

1.  A desigualdade social: É quase impossível encontrar uma grande obra brasileira que não seja atravessada pela questão da disparidade social, seja ela econômica, racial ou regional.

2.  O regionalismo: A tensão entre o sertão e o litoral, o campo e a cidade, molda a forma como nossos personagens vivem o amor, a morte e o poder.

3.  O sincretismo: Nossa capacidade de misturar o sagrado e o profano, o oficial e o popular, cria uma abordagem única para temas como fé, morte e moralidade.

4.  A ironia e a melancolia: Machado nos legou a ironia fina como arma de crítica. Há uma melancolia subjacente, uma consciência da nossa “posição periférica” no mundo, que colore nossa arte.

sotaques diferentes

Conclusão: sotaques diferentes, a mesma canção humana

No fim das contas, a literatura funciona como um grande diálogo global. Shakespeare, Tolstói e Kafka estabeleceram as perguntas fundamentais.

Machado, Graciliano, Clarice e Amado não apenas responderam a essas perguntas, mas acrescentaram novas camadas, novas cores e novos questionamentos, gritando para o mundo: “Sim, nós também sentimos isso, mas aqui, no nosso canto do mundo, a história é assim”.

Os temas universais são a prova de que, apesar de todas as nossas diferenças, a experiência humana é notavelmente semelhante em sua essência. A genialidade da literatura brasileira foi pegar essa essência e vesti-la com as cores vibrantes, as texturas ásperas e as contradições fascinantes do Brasil.

E para você? Qual obra da literatura brasileira melhor traduz um tema universal com aquele “jeitinho” que só nós temos? Deixe seu comentário abaixo e vamos continuar essa conversa

Sobre o Autor

Gerson Menezes
Gerson Menezes

Empreendedor digital com sites e com canais no YouTube de várias modalidades, Gerson Menezes decidiu reestruturar totalmente seu antigo site PegSeuEbook para focar em livros digitais cujo objetivo principal é a motivação para a transformação na vida das pessoas. Uma de suas prioridades é motivar as pessoas a descobrirem o potencial para a conquista de uma melhor condição de vida, em seu sentido mais amplo possível. (Leia mais sobre o Escritor no Menu do Rodapé deste site)

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