Para entender sobre fatos reais e Autor como personagem

Leitores estreantes sentem dificuldade, muitas vezes, para entender sobre fatos reais e Autor como personagem
Isso pode gerar muita confusão na cabeça de quem lê, especialmente se ainda não tem muita familiaridade com literatura.
Ambos os conceitos dão margem a grandes voos para os autores. E podem incrementar a história e somar muito, em matéria de recursos para enriquecer a narrativa literária.

Baseado em fatos reais não significa que algo não possa ser fantasiado. Ou que a narrativa irá seguir, ipsis litteris, o que aconteceu.
Em recente reportagem sobre o filme espanhol Assombrosas (clique na imagem a seguir), tido como sendo do gênero terror, a plataforma Catraca Livre explica que a história se baseia na trajetória do Grupo Hepta, uma equipe especializada em estudar e em solucionar casos paranormais.
O Grupo Hepta, de fato, existe, diz a reportagem, e continua atuante na Espanha. Mas o diretor do filme, Carlos Therón, “usou de sua liberdade criativa para tornar a história mais interessante para o público”.
Isso é perfeitamente legítimo. E é indispensável frisar que, por serem linguagens completamente distintas, cada uma tem seus recursos. Que podem se mostrar valiosos, dependendo da habilidade de quem os utiliza.
Nos livros, o forte – obviamente – é o texto. Nos filmes, são as imagens. E os recursos de cada uma dessas linguagens são distintos. E, também obviamente, quem mais sabe utilizar cada um desses recursos tem mais possibilidades de aumentar o interesse do leitor e do espectador.

Colocar-se no livro como personagem pode ser uma tentação para o Autor.
É interessante fazer parte da história e, dependendo do conteúdo, pode revelar-se como atitude até corajosa.
Mas o leitor deve estar atento para não confundir as coisas. Relato em primeira pessoa nem sempre significa autobiografia. E o que o personagem faz nem sempre vai ser igual ao que o Autor faria na vida real.
Em alguns dos meus livros, coloquei-me na primeira pessoa.
Em A Festa de Fim do Mundo coloquei-me como amigo, que de fato fui, de dois dos personagens ébrios com os quais, na vida real, convivi na juventude.
Mas o relato se desenrola mais como ficção, do início ao desfecho, embora eu tenha me dado o direito de traçar paralelos com coisas que eu tenha vivido.

No livro de contos Iarilma Calada a personagem do título é real, e a descrição, também.
Iarilma foi uma grande amiga, generosa e sempre disposta a ajudar em troca de nada. Foi dessas raras pessoas que não carregam em sua personalidade absolutamente nada de interesseiras.
Fazem, como de fato Iarilma fez, tudo por amizade. E se foi de nossas vidas muito jovem, o que nos entristeceu, a mim e ao meu amigo Leonardo, com quem compartilhávamos a nossa fraterna amizade, sempre almoçando juntos e fazendo até mesmo confidências entre nós.
Mas Iarilma Calada é um livro de contos. E os demais contos nada têm a ver com nossa fraterna amizade.
Escrevi na primeira pessoa, também, em Algumas Coisas eu Contei pra Ela, cujas passagens são a personificação de ficções baseadas no que de fato pode ter acontecido, aqui e acolá.
Ainda assim, não se trata de um livro autobiográfico. E muito do personagem não tem a ver com a forma como o Autor pensa ou costuma agir.
Já o livro Sinfonia para Justine é o mais emblemático para quem quer compreender sobre fatos reais e entender Autor como personagem.
Por suas peculiaridades, preferi classificá-lo como inspirado em fatos reais, e não como baseado na história real de Mary Kay Letorneau.
Ela de fato existiu, e de fato foi presa por ter mantido relações sexuais com o garoto que era seu aluno.
Mas, a partir daí, construí uma trama que nada tem com muitos dos desdobramentos e do desfecho da história real de Mary Kay Letorneau, que deu provas de que realmente viveu uma história de amor com seu aluno.
Tanto que se casou com ele, depois de garantir, judicialmente, que pudessem novamente se encontrar, no que estavam impedidos de fazer pela justiça.
Teve duas filhas com o rapaz e viveram juntos, os quatro, até o falecimento de Mary Kay, vítima de câncer.
Quem não se atreve a ser escritor num país pobre de leitores, como o Brasil, pode ter dificuldades para saber sobre fatos reais e entender Autor como personagem.
Para nós, autores, a esperança é de que tenham todos a certeza de que fatos reais podem ser reais apenas no nascedouro ou em partes, e ficcionais em todo o restante.
E que Autor como personagem na primeira pessoa pode ser igualmente ficcional. Até mesmo na totalidade da trama.
E, mais do que isso: normalmente, só o Autor vai saber em que extensão e em que dimensão existe o real e o ficcional no livro.
Porque o segredo é manter isso em segredo, que nos perdoem a redundância da expressão.
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